Deus está nos detalhes

" Se você não se vestir bem durante a semana, é improvável que esteja bem vestida no sábado a noite."



Esta frase é atribuída a um ícone do mundo da moda, a lendária editora da revista Vogue Diana Vreeland.(Para os não iniciados, a predecessora da Anna Wintour, atual editora de Vogue, retratada no filme " O diabo veste Prada.")



A primeira vez que me deparei com essa frase, fui levada a profunda reflexão.Puxa, é mesmo! A maior parte da vida se vive no dia a dia, na rotina, nas várias segundas-feiras, nos dias ordinários com atribulações, afazeres, trabalho,estudo,problemas...A vida contém apenas esparsamente dias de festa, dias especiais, o tão esperado fim de semana!Se não se desenvolve o hábito de valorizar a segunda-feira de manhã e arranjar um jeito de torná-la menos enfadonha, se só acharmos graça mesmo na sexta-feira a noite, qdo pra maioria das pessoas começa o fim de semana,vamos passar a maior parte da vida sofredoras, insatisfeitas com o presente e sempre antecipando o futuro.Esperando a festa, a saída com as amigas, o dia da viagem, o dia do casamento...Isso lá é uma atitude sensata e inteligente?!



No dia a dia, pequenas coisas podem tirar imediatamente todo o nosso humor, não seria justo que pequenas coisas positivas tivessem o poder de nos ajudar a recobrá-lo?! É profundamente injusto que pequenas, frequentes e irritantes coisas sirvam pra nos alterar o estado de espírito por considerável tempo...e não possamos nos utilizar do mesmo artificío as avessas pra recuperar o bem-estar!



Outro dia passei por um teste de paciência no metrô: em horário de pico, me considerei uma felizarda por achar um bom lugar ( na janela!!! Melhor lugar pra se viajar na hora da muvuca pq se fica a salvo das mochilas, bolsas, barrigas e outras partes do corpo alheio que sempre insistem em nos roçar nessas ocasiões.As vezes vc até se pergunta se aquilo é normal ou se a pessoa está de onda com a sua cara....).Bom, achei o bom lugar sentada, o ar condicionado estava funcionando perfeitamente, eu trazia um livro no qual estava profundamente interessada, a viagem seria longa e bem aproveitada, eu estava cansada e poderia relaxar....o panorama era altamente promissor e dei graças a Deus por isso.



O problema é que não dei graças a Deus por muito tempo.Quase que imediatamente, percebi que no banco de trás havia um menino no colo da avó que aparentemente era um fã fidelíssimo do Flamengo.Nem precisei olhar pra trás e vê-lo, deu pra concluir pq ele não parava de cantar ( será é indicado empregar esse verbo? Bom, uma tentativa de cantoria super mal-sucedida) aquelas músicas de Maracanã sacaneando os outros times.E ainda queria que a vó cantasse junto, ó céus! Cantava mal e tudo errado ainda por cima, ela chegou a dizer " Ihhh, se não sabe cantar direito, não canta." rs Bom, pensei comigo " Daqui a pouco ele desce ou se acalma.Ou a avó decide ter mais pulso."Infelizmente nenhuma das opções acima se concretizou e fui forçada a passar todas as estações da linha 1 do Metrô com aquele flagelo divino ecoando na minha cabeça.Tentei me concentrar na leitura várias vezes, consegui por poucos instantes.Pensei em mudar de vagão, mas estava tão cansada e o metrô tão entupido, que preferi alimentar a ilusão de que algo iria acontecer em breve pra interromper aquele suplício.Cheguei até a pensar em me virar, e me virei discretamente, mas a vó ficou calada, não tomou atitude alguma, e o menino topetudo ainda falou algo tipo " não pode cantar não, tia?! " e continuou sem se fazer de rogado.Affff!



Pra piorar a situação, ninguém deu um pio a respeito.Metrô entupido de gente com ar de trabalhadora, de várias classes sociais, e todo mundo fingindo que não era com eles.Não era possível que eu estivesse compartilhando o mesmo vagão com Dalai Lamas e Madres Teresas! Mas as pessoas não deram um pio, nem um grupo de peões de obra irônicos pra me ajudar naquele momento! ( de vez em qdo é possível fazer pequenas rebeliões em vagões de metrô, eu mesma já participei de uma qdo viajava no vagão destinado as mulheres e tivemos um invasor topetudo!)

Será que todo mundo estava achando normal aquilo, aquela berraria sem limite por estações infindáveis, ou seria eu uma chata sem limites?! Comecei uma auto-análise no vagão.Cheguei a elocubrar uma hipótese arriscada: me virar pra trás e, de forma mais delicada que eu fosse capaz, tentar explicar a vózinha mosca morta que paciência tem limite.Que uns berros aqui e ali tudo bem, é uma criança e coisa e tal, mas pqp aquilo ali era coisa pra Gandi! Pensei na reação dela ( a pior possível) e imaginei até minha ultima, e confesso que crudelíssima, ameaça: " Tudo bem, pq a senhora é incompetente pra dar limites ao seu neto, pessoas que não tem nada a ver com o babado e pagaram o metrô são obrigadas a passar por isso.A senhora não vai fazer nada?Só disse uma vez que ele não devia cantar e depois ficou muda brincando de estátua?Nem uma tentativa de controlar essa criança, pelo amor de Deus?! Pois bem, sabe qual é meu consolo, minha senhora? Eu tive que aturar seu neto mal educado menos de uma hora na vida, a senhora vai aturá-lo pro resto da sua vida! E sabe de uma outra coisa: se a senhora continuar assim, amorfa, ele vai deitar e rolar cada vez mais, vai virar uma criança completamente sem freios, sem respeito algum a figura de autoridade, sem respeito algum pela coletividade...e deixa só ele virar adolescente rebelde pra senhora sentir na pele o que é bom pra tosse!"



Imaginei tudo isso, mas calei a boca, não ousei transformar isso em realidade.Sei que tenho ainda um péssimo traço de personalidade agravado por uma faculdade de Direito:qdo começo uma argumentação, vou até o fim expondo incansavelmente todos os meus argumentos.Se eu começasse essa discussão, não saberia onde a coisa iria parar,cheguei até a imaginar os guardas do metrô vindo pra resolver o motim, rebelião, Fla-Flu com guerra de torcidas ou coisa que o valha.( Será que os outros passageiros permaneceriam sem tomar atitude? Será que se eu desse o primeiro passo encontraria adeptos, partidários? Será que, ao contrário, seria linchada por Gandis compassivos subitamente transformados em agressivos pela minha atitude?Como era coisa demais pra administrar e proporções que mui provavelmente fugiriam do meu controle, decidi entubar a questão.Saí do metrô me consolando com a minha tese.

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